quinta-feira, 5 de junho de 2008

No meio da calçada tinha uma pessoa

Era quase um ritual. Acabava a última aula na faculdade, era a hora de voltar pra casa. Antes um papinho com a galera, talvez uma cerveja de leve, ou algo do tipo. Depois a volta. A caminhada de volta.
Morava perto de casa, os companheiros de faculdade o chamavam de sortudo. O caminho era curto, menos de um quilometro, e era todo percorrido por uma calçada. Sempre a mesma calçada. Era meio por acaso, meio por costume. Era limpa, bonita, sem grandes buracos. Em dias de sol, as árvores das propriedades ofereciam uma louvável sombra. Em dias chuvosos, a regularidade não permitia a formação de grandes e desagradáveis poças de lama. Ó, céus, será a calçada perfeita? Era segura. De certa forma, ele sempre sabia o que podia acontecer, quem encontrar.. estava tudo sob controle.
Os pensamentos o faziam esquecer da barulheira do trânsito, dos rostos desconhecidos e das oportunidades que existiam. Geralmente, era "aquela menina". Às vezes, era "aquele problema". Outras vezes, era "aquilo que eu podia ter feito". Mas, como acontece com todo mundo, um dia você pensa o porquê de estar pensando e se é válido mesmo tanto pensamento.
Esse dia se multiplicou por três dias. Não foi coincidência. Foram nos três dias que ele ficou doente em casa, mal podia se levantar. A calçada tão querida não conseguiu protegê-lo de uma súbita virose/resfriado/gripe que o derrubou como quem derruba um castelo de cartas. Entre um e outro programa ridículo que passava na Tv, entre um e outro Cd que ele escutava, naquele meio tempo dentro do banheiro que ele decidia se iria se masturbar ou não (ele tirava forças sabe-se lá de onde), ele pensava em estar pensando. E o porquê de pensar tanto. E o porquê daquilo. E daquilo outro. E daquela outra coisa.
Foram três dias de terapia intensiva. Três dias de paz. De inquietação também, mas uma inquietação saudável. Analisou sua vida, suas atitudes, sua maneira de ser com os outros e a maneira dos outros para com ele. Pensou em sua vida sexual, sua vida amorosa, sua vida financeira e concluiu porra nenhuma. Ficou satisfeito. Meio que esperava isso. Não foi um tempo jogado fora. Aquele trabalho da faculdade podia esperar mesmo.
Os três dias se foram, a rotina diária e conhecida estava de volta. Lógico, não era utópico ao ponto de achar que três dias de reflexão iriam mudar sua vida, iriam fazê-lo ser diferente, mudariam sua sorte de agora em diante. Tendo conhecimento disso, sentiu-se leve.
O professor disse:
- Galerinha, tô esticando o prazo de entrega daquele relatório. Nem quero ver ninguém atrasando agora, viu?

Nada como acabar uma aula com uma boa notícia. Os companheiros o aperriaram pra tomar uma cerveja. Ele recusou. Resquícios da súbita virose/resfriado/gripe não permitiam. E ele também nem tava muito afim. A caminhada de volta estava se desenrolando. Uma chuvinha de nada caía. A tão querida calçada o protegia daquela água que teimava em cair devagarzinho. Mas ele mudou de calçada. Tirou o boné, queria aquela chuvinha molhando um pouco o cabelo e o rosto. Só de leve. Não foi uma boa idéia. Um forte espirro ameaçou. Ele continuou andando, fechou os olhos, levou as mãos ao rosto e deixou rolar. Quando "voltou a si" já era tarde: aquele fichário era um caminho sem volta. Esbarrou em uma menina como se fosse um zagueiro de futebol americano. Antes mesmo de recolher as coisas, ela olhou e soltou:
- Isso é uma cantada? Só tem eu aqui na parada.. tu mirou em mim.. só pode!

E soltou aquele sorriso. Ele meio sem jeito e ainda procurando limpar as mãos disse:
- Pô, era quase isso.. na verdade eu queria limpar minhas mãos em ti sem tu perceber.

Aquela clássica gargalhada feminina onde elas levam as mãos a boca sabe-se lá o porquê.
- E aí? Vem sempre por aqui? - a menina fala em tom de brincadeira.
- Nessa calçada? Primeira vez... - ele responde continuando o caminho pra casa.

Lá na frente ele olha pra trás e sorri. E ela sorri. E depois a chuva fica mais forte e os dois correm em lados opostos.

5 comentários:

Raquel Farias disse...

A parte do banheiro é hilária!
Eu sempre tenho momentos de reflexao onde concluo porra nenhuma.
A história da menina parece de filme... pensei q ia rolar algo mais...

Omota disse...

que bacaaaaana, Dé!



Lindão o texto!



Nada de parte do banheiro, o texto é todo bom, sincero e objetivo!



Parabéns.

Srtª Amora disse...

bastante complicado a decisão de se masturbar ou não... e acabar não concluíndo nada. eu faço isso (não concluir nada tbm, ok?) :D

ah, às vezes é bom mudar de calçada... olhar tudo de outra perspectiva.

bacana o texto.

Anônimo disse...

Texto muito massa!

=D

Pedro disse...

Poucas vezes li algo no computador que impedisse meus olhos de piscar.
Que texto!